Por Maria Ester Rodrigues
Dois acontecimentos cotidianos recentes
me fizeram refletir sobre um assunto aparentemente “resolvido”. Numa conversa
com um jovem publicitário, em que o mesmo contava sobre suas impressões a
respeito de sua psicoterapia pessoal, interveio uma professora universitária de
outra área, parecendo um tanto contrariada com o fato de alguém fazer
psicoterapia e um tanto surpreendida com o fato de alguém confiar na
competência técnica de alguém habilitado para atuar como psicoterapeuta. Aparentemente
sem conexão com algum aspecto específico da conversa ela efetuou o seguinte
comentário: “Colocar-se nas mãos de um psicólogo é tornar-se refém da visão de
mundo de uma pessoa em particular”.
Mais recentemente ainda, alguém desconhecido pra
mim, que solicitou entrada num grupo de interesse que criei e gerencio numa
rede social, questionou algo com base no desgastadíssimo argumento
da neutralidade ou imparcialidade da ciência. Enfim, dois comentários que,
sob o pretexto de alertar para algo importante, quase alertam sobre a
“reinvenção da roda”. Um tanto cansativo, mas vale a pena comentar.
Inúmeras vertentes de argumentação poderiam ser
utilizadas para discorrer sobre os comentários acima. O fato de o
psicoterapeuta ser uma pessoa e possuir uma visão de mundo invalida ou mesmo
compromete a sua atuação profissional e técnica? O fato de qualquer
profissional, provindo de qualquer área de formação ser uma pessoa e possuir
uma visão de mundo invalida ou mesmo compromete a sua atuação profissional e
técnica? Indo além; e sobre a atuação profissional da “reclamante”? O que os
seus alunos teriam a dizer sobre a interferência de sua visão de mundo em seu
trabalho? Outra pergunta que não quis calar também se fez presente, qual seja:
Qual seria o instrumento de trabalho do psicólogo clínico (ou outro qualquer)
afinal? A sua personalidade, as suas características pessoais (incluindo a sua
visão de mundo) ou o conjunto da sua formação profissional incluindo seu
repertório teórico-técnico, preferencialmente pautado em um conjunto de
práticas baseadas em evidências (preferencialmente científicas) [1]
A depender do tipo de resposta que se possa ter
para cada uma dessas perguntas, o aparente espanto da nossa colega pode se
respaldar em menor ou maior sustentação empírica. Caso a atuação do psicólogo
seja entendida como pautada exclusiva e preferencialmente num conjunto de
disposições pessoais, talvez fazer psicoterapia seja realmente se colocar à
mercê da visão de mundo de alguém. Caso seja entendida com mais rigor e ética,
incluindo pelos próprios profissionais que devem respeitar um código de ética
bastante claro a esse respeito, talvez seja uma preocupação um tanto ingênua.
Isso depende da visão de mundo de cada um...
As alíneas “c”e“b” dos Artigos 1º e 2º, respectivamente, do Código de Ética profissional do psicólogo exemplificam as asserções anteriores conforme exposto abaixo:
“Art. 1º - São deveres
fundamentais dos psicólogos:... b) Prestar serviços psicológicos de qualidade,
em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços,
utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados
na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional;” (2005, p. 8)
“Art. 2º - Ao psicólogo é vedado:
...b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas,
de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de
suas funções profissionais;” (2005, p. 9)
Em todo caso existem profissionais com as mais
variadas opções pessoais como credos, religiões, filosofias, preferências
partidárias etc. que, mesmo não fazendo ou não devendo fazer parte do processo
psicoterapêutico, podem ser vasculhadas, a depender da preferência do
interessado, caso consiga ter meios para dispor de tantas informações. É claro
que uma ou outra informação, caso seja considerada muito importante pelo
paciente (como a religião, por exemplo) pode ser fornecida pelo profissional a
ser contratado; porém, nunca numa quantidade tão extensa; o que equivaleria a
subverter o objetivo do processo psicoterapêutico.
Quanto aos profissionais, cabe esperar que
continuem investindo em formação técnica mais do que em divulgação de valores e
preferências pessoais. Não é mais que morno afirmar que as pessoas não são
neutras e nem a ciência o é; mas afirmar isso apenas para aceitar a asserção e
sem ao menos ter como objetivo minimizar os óbvios vieses e tendenciosidades de
um cotidiano pessoal e profissional mais do que pautado e discutido em diversas
instâncias formativas das mais variadas profissões (ou pelo menos pra mim e na
minha formação...) é temerário para qualquer um; independente da profissão, da
raça, credo, cor, religião, partido político, preferência filosófica, estado
civil entre outros.
No caso da psicologia e para analistas do
comportamento, com certeza vieses e tendenciosidades podem vir a existir, o que
resto, é verdadeiro para a prática profissional de qualquer um. No entanto,
para um analista do comportamento sua detecção é vista como possível e o seu
controle como desejável, com vistas à autocrítica permanente e não mera
aceitação passiva. Colegas de outras áreas da psicologia e de outras profissões
também podem e talvez devam compartilhar de posicionamento semelhante.
[1]
O termo
“científico”, nesse caso está sendo usado em oposição a achismos, casuísmos, curandeirismos,
práticas meramente opiniáticas ou até mesmo adivinhatórias ou esotéricas
quaisquer, bem como a técnicas não validadas por métodos científicos, eles
próprios (os métodos) validados por uma comunidade científica que compartilhe
um conjunto de práticas consideradas pela mesma como científicas
Originalmente
publicado no Blog “Comporte-se”: Psicologia Científica http://www.comportese.com/2012/02/visao-de-mundo-pessoal-e-ferramenta.html
em 01/02/12 00:00 Brasilia Time
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